Testamento, de Denys Arcand |Quinta-Feira Nos Cinemas

Wanna Be Nerd
5 min readJun 27, 2024

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“Quando Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, pensei em fazer alguma coisa. Mas a Ucrânia fica longe, e eu estou velho”…

Trabalhando mais uma vez com Rémy Girard, seu ator-fetiche e alter-ego, o cineasta canadense Denys Arcand, já octogenário, volta ao seu tema favorito: os conflitos geracionais, atravessados pelas questões afetivas e políticas. E, como de praxe, faz uso de um humor sobremaneira cínico, para ilustrar a crise generalizada das esquerdas mundiais. A despeito da amargura de algumas situações, ele consegue a proeza de obter um final feliz. Ou quase.

Mas vamos do começo: na seqüência de créditos iniciais, um mural famoso mostra um navegador francês, considerado o “descobridor” do Canadá, interagindo com alguns indígenas, numa pintura que servirá como mote para o protesto de “representantes dos povos originários”, que declaram que ela é ofensiva em relação a estes povos, por conta das representações estereotipadas. O mural encontra-se na parede de um lar para idosos, onde encontramos o nosso protagonista, um arquivista aposentado, Jean-Michel Bouchard, que fica cada vez mais chocado perante as contradições hodiernas do identitarismo…

Em determinado momento, Jean-Michel assiste a uma premiação literária, na qual é confundido com um autor famoso (aparentemente desconhecido pela comissão organizadora). Ele é tratado com rudeza pela segurança do evento, que exige que ele se sente numa determinada fileira, onde estarão os demais premiados. Na verdade, exceto por ele, são todas mulheres: uma autora lésbica, outra chinesa, uma terceira árabe, cada uma delas defendendo, em seus respectivos discursos, a valorização das minorias. Por motivos conjunturais, Jean-Michel é hostilizado ao tentar participar de um debate após a cerimônia, sendo desconvidado por não estar apto a refletir sobre questões como “a menstruação do pensamento”, por exemplo. Quem conhece o estilo cáustico dos roteiros arcadianos, sabe o que vem pela frente…

Créditos de Imagem: Divulgação / Imovision / Cinémaginaire Inc

A produção foi rodada em Québec, no Canadá e a perfomance de Sophie Lorein chegou a ser lembrada no Vancouver Film Critics Circle para ‘’Melhor Atriz’’, mas ela acabou não ganhando o prêmio

Voltando para o lar de idosos, após encontrar um amigo de juventude, que lamenta que, “hoje em dia, nomes como Michel Foucault, Jacques Derrida e Andrei Tarkovski estão esquecidos”, Jean-Michel depara-se com os supracitados manifestantes, que exigem uma ação da diretora do local, a austera Suzanne Francoeur (Sophie Lorain), que, como burocrata obediente que é, requer auxílio da Ministra da Saúde (Caroline Néron), que a convence a tomar uma decisão assaz estouvada.

Em meio a conversas banais, Suzanne comunica a Jean-Michel algumas percepções chocantes: além de eles notarem que a viúva de um idoso atlético, falecido após um passei de bicicleta, passou a fumar e comer os produtos multiprocessados que sempre evitou, uma das hóspedes do asilo decide tornar-se uma pessoa não-binária e, como tal, requer tratamento apenas através de pronomes neutros, o que Jean-Michel acha idiomaticamente dificultoso. Para piorar, a biblioteca da instituição será desativada, para a instalação de uma sala de jogos eletrônicos. Jean-Michel pergunta a Suzanne se não teria como doar os livros a alguém. Ela é direta e incisiva: “não houve nenhum interessado. Os livros serão reciclados para serem convertidos em papel de embrulho”. Tristes tempos nós vivemos, não é?

Trailer

Ficha Técnica

Título original e ano: Testament, 20. Direção e Roteiro: Denys Arcand. Elenco: Rémy Girard, Sophie Lorain, Guylaine Tremblay, Caroline Néron, Charlotte Aubin, Robert Lepage, Denis Bouchard, René Richard Cyr, Clémence Desrochers, Guillaume Lambert, Danièle Lorain, Marie-Soleil Dion, Louis-José Houde, Gaston Lepage e Marie-Mai. Gênero: Comédia, Drama. Nacionalidade: Canadá. Direção de Fotografia: Claudine Sauvé. Direção de arte: François Séguin. Figurino: Anne-Karine Gauthier. Trilha Sonora Original: Martin Desmarais. Montagem: Arthur Tarnowski. Produção: Denise Robert, Cinémaginaire Inc. Distribuição: Imovision. COR. Duração: 1h 55 min. Classificação: 14 anos

A partir destes elementos sociológicos, Denys Arcand constrói diálogos inspiradíssimos, daqueles que acostumamo-nos a ver/ouvir em obras marcantes como “O Declínio do Império Americano” (1986) , “Jesus de Montreal” (1989) e o oscarizado “As Invasões Bárbaras” (2003). Recorrendo aos serviços de uma psicóloga (ou prostituta), interpretada pela cantora Marie-Mai, que alisa os seus cabelos, enquanto ele desabafa, Jean-Michel descobre que Suzanne pode estar apaixonada por ele, e envidará esforços para aproximá-la de sua filha evadida, Rosalie (Charlotte Aubin). Antes, confessar-se-á para ela: “a maioria dos homens está acostumada a pagar para receber um pouco de carinho”. Jean-Michel não lamenta ser solteiro ou não ter constituído família, mas lembra com melancolia que uma de suas namoradas submeteu-se a um aborto, por causa dele. É um homem terno e erudito, que não está suficientemente preparado para lidar com os atropelos da contemporaneidade, evitando possuir sequer um telefone celular. Cada um à nossa maneira, identificamo-nos com ele!

No inusitado desfecho, Jean-Michel põe em prática, na própria vida, algo que aconselha à arredia Rosalie: “precisamos efetuar algumas ações fortuitas de bondade. É isso que ajuda às demais pessoas — e a nós mesmos — a seguirem em frente”. Como efeito colateral dessa decisão, a necessidade de, daquele momento em diante, “começar a se preocupar com o aquecimento global”. A derradeira seqüência do filme, passada no ano 2042, confirma o desprezo do realizador pelo fanatismo discursivo de alguns militantes, incapazes de assumir as limitações de sua intransigência, o que explica os ciclos de apagamento e redescoberta, referentes a alguns artistas, ao longo da História. Trata-se de um filme inteligentíssimo que, conforme sintetizado pelo título, coroa o legado de um dos mais brilhantes realizadores do Canadá. Em mais de um sentido, obrigatório!

por Wesley Pereira de Castro

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