Ninguém Sai Vivo Daqui, de André Ristum
“Quando a gente fica aqui muito tempo, a gente é obrigado a se despedir das pessoas”…
Adaptado livremente de “Holocausto Brasileiro — Genocídio: 60 Mil Mortos no Maior Hospício do Brasil”, de Daniela Arbex — livro-reportagem que já fôra convertido em documentário no ano de 2016, co-dirigido pela jornalista e Armando Mendz –, o roteiro de “Ninguém Sai Vivo Daqui”, de André Ristum, conta com a colaboração de Marco Dutra, um dos maiores especialistas contemporâneos em narrativas de horror no Brasil. Isso explica a perspectiva de gênero adicionada ao filme: privilegia-se o suspense à denúncia, ainda que este segundo aspecto não seja de todo eliminado. Afinal, a luta antimanicomial enfrentou desafios recentes mui exacerbados, por conta de projetos legislativos que ameaçaram ser implantados durante o (des)governo de Jair Bolsonaro, em que o perigo do ressurgimento de ambientes como aquele mostrado no filme tornou-se patente…
Na abertura, diz-se que os personagens retratados são fictícios, mas as situações foram inspiradas naquilo que é relatado no livro supracitado. A fotografia em preto e branco de Hélcio Alemão Nagamine realça a comparação com o imaginário cinematográfico dos filmes que mostram as atrocidades ocorridas nos campos de concentração nazistas e, num primeiro relance, também se associa às caracterizações assustadores que vemos em produções sobre mortos-vivos. Os vilões são outros, entretanto: humanos, demasiado humanos, infelizmente.
A trama é contada sob o ponto de vista de Elisa (Fernanda Marques), jovem de vinte e três anos de idade que, após engravidar do namorado, é enviada pelo pai para o Hospital Colônia, onde ela dá entrada como esquizofrênica. Apesar de estar grávida, ela é examinada de maneira superficial pelo médico do local, e confinada num quarto insalubre, no qual é agredida, na primeira noite, por uma das internas. Graças ao apoio de Wanda (Rejane Faria), Elisa consegue manter a razão por algum tempo, mas é violentamente assediada pelo traiçoeiro Juraci (Augusto Madeira), empregado do hospício, que deixa evidente a intenção de estuprá-la.
Trailer
Ficha Técnica
Título original e ano: Ninguém Sai Vivo Daqui, 2023 | Direção: André Ristum | Roteiro: André Ristum, Marco Dutra e Rita Glora Curvo — adaptação livre do livro ‘’Holocauto Brasileiro’’, de Danela Arbex | Elenco: Fernanda Marques, Augusto Madeira, Andréia Horta, Rejane Faria, Naruna Costa, Aury Porto, Arlindo Lopes e Bukassa Kabengele | Nacionalidade: Brasil | Gênero: Drama, Terror | Direção de Fotografia: Hélcio Alemão Nagamine | Direção de Arte: Dani Vilela | Montagem: Bruno Lasevicius | Trilha Sonora Original: Patrick de Jongh | Produtor executivo: Rodrigo Castellar | Produtores: André Ristum, Rodrigo Castellar, Caio Gullane, Fabiano Gullane e André Novis |Produtoras: Sombumbo e TC Filmes| Coprodutoras: Gullane | Distribuidora: Gullane. Duração: 96min.
Enquanto Wanda compartilha com Elisa a sua história triste, advinda de uma gravidez contraída em seu ambiente de trabalho, cujo filho foi retirado dela há mais de trinta anos, nota-se que a maior parte das internas é vítima da injustiça comumente direcionada às mulheres: uma delas, Valeska (Andréia Horta), foi hospitalizada por ser amante do prefeito da cidade onde morava, e é morta quando tenta fugir. As situações são angustiantes, mas algo na celeridade como o filme — que dura apenas uma hora e vinte e seis minutos — é conduzido prejudica o desenvolvimento dos personagens, bem como o nosso envolvimento emocional em relação a eles…
Em razão de este longa-metragem ser uma condensação da série “Colônia”, produzida e exibida no Canal Brasil em 2021, muitos dos fatos ocorridos, bem como o relacionamento entre os internos, soa mal-explicado e/ou abandonado. Podemos destacar, neste sentido, a maneira persecutória como age Rosana (Ana Kutner), personagem que intimida Elisa desde a sua primeira aparição (estando ela maquiada de maneira terrorífica) e que fala algo sobre uma bolsa, destacado titularmente no segundo dos dez episódios da série em pauta. A montagem, portanto, é bastante problemática naquilo que elimina, sendo a passagem de tempo, no filme, assaz atropelada.
Créditos: Divulgação / Gullane Entretenimento
O elenco é competente e, dentro das convenções de gênero, o filme é exitoso em suas intenções, não obstante a execução propriamente dita resvalar em questionamentos éticos e num desfecho francamente reprovável, em que o desamparo de Elisa dá lugar a uma inverossímil operação vingativa. Mais uma vez, no afã por assustar/impressionar o espectador, o diretor negligencia a dramaticidade intrínseca do enredo, em prol dos arroubos de suspense. Neste sentido, Laura (Naruna Costa), funcionária do hospital que se torna uma importante aliada de Elisa, no que tange à crença em sua sanidade e na tentativa de impedir os crimes cometidos por Juraci, revela-se bem mais impotente do que é anunciada, quando é promovida a uma função gerencial. Idem quanto ao maltratado Raimundo (Bukassa Kabengele), paciente freqüentemente submetido a sessões de eletrochoques.
Para além dos problemas roteirísticos e de sua inespecificidade enquanto longa-metragem, “Ninguém Sai Vivo Daqui” permite a retomada de um necessário debate sobre as questões referentes à psiquiatria e sua relação com os preconceitos sociais. Nesta seara avaliativa, o filme merece, sim, ser recomendado, desde que não se incomode com o esvaziamento dramático das situações e com a obliteração compositiva dos personagens: a própria Elisa não dispõe de suficiente vigor enquanto protagonista, mas os sofrimentos a que ela é submetida devem ser conhecidos, visto que aquilo que ocorreu na década de 1970 pode ainda estar em curso, nas brenhas institucionais de uma conjuntura social ainda marcada pelo racismo e misoginia estruturais. Posicionemo-nos!
