Dora e a Cidade Perdida, de James Bobin

Wanna Be Nerd
6 min readNov 14, 2019

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Existe uma teoria no meio nerd que diz que caso Indiana Jones, em Caçadores da Arca Perdida (1981), o primeiro filme da franquia criada por George Lucas e Philip Kaufman, decidisse ficar quieto ensinando paleontologia na Universidade, nada mudaria no mundo em que o filme se passa. Afinal, ele luta durante toda a projeção para impedir que os nazistas peguem a arca, mas eles capturam Indy e a pegam mesmo assim. Um deus ex machina, nome dado a acontecimentos de roteiro que salvam o protagonista milagrosamente, mostra que a arca era “amaldiçoada” e todos que olharam para ela aberta morreram. A arca é capturada por nosso “herói” e escondida num galpão entre milhares de caixa para que sua maldição não caia sobre mais ninguém.

A questão aqui não é apenas a inutilidade de Indiana na tentativa de derrotar os nazistas, mas também suas motivações. Nosso arqueólogo do chicote nunca esteve interessado em respeitar os objetos de adoração de outros povos, mesmo sendo professor, e a busca pela a arca se mostra política e acima dos interesses dos próprios personagens, já que seria usada quase como arma de guerra.

É claro que nada disso importa, afinal é só um filme. Desta mesma forma, Dora e a Cidade Perdida é também apenas um filme. E um que se direge ao público infantil e se basea em uma personagem cujo público tem de 4 a 6 anos de idade. Mas Dora (Isabela Moner) é uma personagem de ascendência latina e Hollywood está muito ligada nas questões identitárias que pautam parte do debate na indústria hoje em dia.

Os pais de Dora (Michael Peña e Eva Longoria) vivem na floresta amazônica com ela e seu macaquinho Botas (com a voz de Danny Trejo), No lugar, a menina aprendeu tudo que sabe sobre o mundo. Seus pais são arqueólogos como Indiana Jones, com a diferença de que eles explicam para ela e seu primo Diego, ainda crianças, que isso não faz deles caçadores de tesouros e que isso, na verdade, é algo péssimo a se fazer. Dora cresce e toma gosto pela Ciência, mas seus pais percebem que deixá-la na floresta é perigoso depois que a garota se machuca explorando uma área sozinha. Eles, então, a mandam para Los Angeles para viver com seus tios, os pais de Diego.

Aqui o filme muda para um coming of age de Dora, tendo que enfrentar a verdadeira “selva”, o ensino médio — piada repetida algumas vezes. Nossa heroína sofre com o bullying na escola, a rejeição do primo, competição acidental com a nerd arrogante da escola. Nesse ponto a trama é muito inteligente em fincar os pés no chão. Ao criar o perigo da exploração e estabelecer seu caráter científico, somos cada vez mais levados a entender o filme como apenas uma temática adolescente que usou uma personagem já famosa. Mas, num passeio da escola, Dora e os outros excluídos são sequestrados e levados de volta à Amazônia. O lado de exploradora de Dora precisa voltar para que saiam dessa situação.

Trailer

Ficha Técnica

Título original e ano: Dora and The Lost City of Gold, 2019. Direção: James Bobin. Roteiro: Nicholas Stoller, Matthew Robinson, Nicholas Stoller com argumento de Tom Wheller — baseado nos personagens criados por Eric Weiner, Chris Gifford, Valerie Walsh. Elenco: Isabela Moner, Eva Longoria, Michael Peña. Benicio Del Toro, Madelyn Miranda, Mar Weiner, Sasha Toro, Joey Vieira, Madeleine Madden, Pia Miller, Jeff Wahlberg, Adriana Barraza, Nicholas CombeDanny Trejo e Eugenio Derbez. Gênero: Aventura, familia. Nacionalidade: Eua, México e Austrália. Trilha Sonora Original: John Debney e Germaine Franco. Fotografia: JAvier Aguirresarobe. Edição: Mark Everson. Distribuição: Paramount Pictures do Brasil. Duração: 01h42min.

A cena inicial é uma animação frenética e colorida das aventuras de Dora e Diego que logo se mostra apenas fruto da imaginação das crianças. O filme inteiro funciona dessa maneira: mostra uma alucinação como algo real para logo desmascará-la. E o contrário também tem êxito, como quando Dora leva pra escola seus equipamentos de sobrevivência pra floresta e vemos como a menina deveras está no mundo real.

Talvez por se ganharem a missão de adaptar uma personagem de forma quase didática pra um filme que precisa fazer milhões de dólares em bilheteria, os roteiristas se viram obrigados a abraçar a alucinação que era essa proposta. E dedicaram-se de verdade, pois, a exemplo, em uma cena especifica onde a própria Dora e seus amigos são intoxicados e alucinam por algumas horas numa bad trip, sente-se a construção da narrativa caminhando passo a passo para se estabelecer.

Por mais que a trama siga quase sempre muito caótica e cheia de furos, Dora e a Cidade Perdida parece saber muito bem onde quer chegar. O lugar comum em filmes infantis sobre ‘a aceitação do outro e do diferente’ — o grupo de quatro amigos que se forma na escola tendo que se unir e provar seu valor — é levado a um patamar social. O Outro aqui é tido também como os povos originários das Américas. Toda a jornada até a fictícia Parapata, cidade Inca feita de ouro, é uma tentativa de chamar a atenção para o papel predatório do pensamento colonial. Em nenhum momento da jornada àquele povo mítico é representado como primitivo ou ultrapassado, sendo usadas grandes obras de engenharia de sua cultura como motor para o caminhar do enredo. E, ao contrário da lendária produção de George Lucas, as descobertas feitas não são encaixotadas por americanos, elas precisam ser preservadas. Sem contar que a presença de Dora é imprescindível para a manutenção da história pré-colombiana. A ciência e o conhecimento são o que salvam os personagens e não a coragem e a adrenalina.

É claro que as representações da floresta ainda são frutos de décadas de imaginário do cinema e revistas pulp, com templos com armadilhas, enigmas e coisas sobrenaturais à la Lara Croft só que adolescente. Contudo, a tentativa de dizer que não é legal tomar a riqueza dos povos antigos por que elas são feitas de ouro ou te dão poderes é importante, principalmente em filmes para crianças.

Dora e a Cidade e Perdida assume a loucura de um captalismo tardio que é a sua própria existência e usa dessas armas como pode. Talvez não seja o suficiente para ensinar crianças a não serem racistas, xenófobas e colonialistas, mas pelo menos tenta. Produções para adultos nem sempre tem esta iniciativa.

Por Maurício Ferreira

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